Para caminhar é preciso ter uma meta. Saber aonde se quer chegar. Conhecer os meios para se pôr em movimento e, assim, andar com dignidade e sabedoria. Conhecer o caminho percorrido é uma forma de (re)conhecer o trabalho feito. Observar as curvas, os desníveis, com seus acertos e desacertos. Isto ajuda a entender seu movimento, sua história.
Uma retrospectiva histórica do Artesanato de Itaguara nos ajuda a situar seu caminho e o trabalho das artesãs. Trata-se de um período sui generis, marcado pelo sonho, desejo de uma nova instância, um novo desenho das camadas populares.
Até o ano de 1976 era comum encontrar as artesãs andando pela cidade de Itaguara com seus trabalhos em mãos, para vendê-los de porta em porta. Trabalho árduo, cansativo e desvalorizado, pois ao fim do dia tudo era vendido bem barato, para não voltar com as mãos vazias e as sacolas cheias. O isolamento de cada artesã impedia o aspecto social como também o exercício de agir coletivamente. Diante disso, um trabalho social teve início no Povoado de Boa Vista, sob a coordenação da Paróquia Nossa Senhora das Dores. O objetivo era estabelecer uma relação entre Educação Popular e Pastoral Popular. Esse tipo de trabalho foi fundamental, naquele período, na medida em que conseguia uma maior aproximação com o povo e estimulava sua participação nas diversas atividades religiosas e sociais do povoado. Outros povoados também foram contemplados nesse trabalho, tais como Boa Esperança, Barro Branco, Sumaré, Fangueiros, tendo como centro das diversas atividades o Povoado de Boa Vista.
Em 1977, percebemos que não era possível um trabalho popular sem método, planejamento, estratégia e, ainda, sem uma equipe de assessores. Em vista disso, foi elaborado um Projeto de Educação Popular e Pastoral Popular em parceria com a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), através da Pró- Reitoria de Extensão, com duração de seis anos. Neste período, em cada final de semana, quatro a seis estudantes iam para o Povoado de Boa Vista desenvolver um trabalho social com adultos, família, jovens e crianças. Era um grupo interdisciplinar, composto por estudantes de Enfermagem, Serviço Social, Psicologia, Sociologia e Pedagogia. A comunidade em questão compunha-se de cerca de cento e setenta membros. O objetivo era levar o grupo a refletir sua situação social, religiosa, histórica e cultural, seguindo a metodologia da Educação Popular e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Várias etapas e atividades emolduraram esse trabalho com os assessores, tais como: reuniões na PUC-Minas, em Itaguara, no Povoado de Boa Vista, visita às famílias, às escolas rurais, ao sindicato, organização de festas e participação nas Feiras de Artesanato na Universidade. Para se construir um projeto com esse direcionamento, os procedimentos foram solidamente comprometidos com uma ação participativa. A experiência mostrou que uma forma de enfrentar os problemas que apareceram foi o fortalecimento político da comunidade e a constatação de que a cultura se constrói historicamente. História é movimento. Movimento composto de acertos e erros, vitórias, derrotas e conquistas. Assim, a comunidade foi entendendo que a cultura popular é a cultura que se caracteriza como produto de uma ação política de formação de consciência, onde são identificados os interesses e valores das classes populares. Cultura popular é o resultado de uma ação transformadora que valoriza o que é orgânico aos interesses das camadas populares, como processo dinâmico de organização e mobilização do grupo. Na medida em que os grupos foram-se organizando, o trabalho foi-se configurando e se transformando em função de seu próprio desenvolvimento. Assim, as pessoas se organizavam para participar das feiras na PUC-Minas, chegando a ter 20 pessoas das comunidades rurais. Todos ficavam hospedados no Mineirão, em Belo Horizonte. As decisões eram tomadas em grupo, inclusive em 1982, o grupo decidiu qual artesã iria tecer e entregar ao Papa João Paulo II um presente – uma colcha de tear. Coube à artesã Dona Merita tecer e entregar, durante a missa, celebrada em Belo Horizonte, uma lembrança do artesanato de Itaguara.
O resultado disso foi o crescimento das comunidades rurais nos aspectos sociais, financeiros, religiosos e culturais. Foram desenvolvidas outras atividades e intervenções sociais durante todo o período deste trabalho – palestras sobre saúde e higiene, direitos trabalhistas, cursos sobre bíblia e festas populares, cursos sobre leitura e produção de textos para crianças e jovens, cursos para jovens sobre sexualidade, encontros de casais, visitas ao Centro de Artesanato “Salão do Encontro”, em Betim, curso de primeiros socorros. Para essas atividades foram feitas parcerias com as seguintes instituições: Casa de Da. Dorica de Itaguara, Servas, LBA, Sindicato dos Trabalhadores Rurais, o que enriqueceu o projeto. É importante destacar que as pessoas não estão prontas, constituem-se como seres humanos, enquanto constroem a história e produzem bens culturais materiais e imateriais. Esse entendimento do projeto sinalizou a possibilidade de transformação da realidade e apontou o futuro como orientador de ações.
Foi no campo da Pastoral Popular que o projeto foi-se constituindo, aliado à Educação Popular e à Ação Social. Isso fez com que se pensasse sempre o papel do agente externo, sua inserção no trabalho e a situação das camadas populares. O papel particular do agente tem uma função pedagógica, pois inclui uma contribuição à comunidade. Agente e camadas populares têm uma identificação na mesma causa e no projeto a ser executado. O agente é agente por ser diferente, considerando seu lugar no trabalho, sua posição no processo a ser desenvolvido e seu universo cultural. Isso vale na medida em que o agente é educador e não dirigente ou gerente. A pastoral popular e a educação popular evocam ao invés de impor, simbolizam ao invés de sinalizar. Não se baseia, a priori, em conhecimentos teóricos, mas na vida, na prática, em sentimentos e valores da história do povo. E para que isso seja detectado e trabalhado, é fundamental que a prática/reflexão educativa tenha um aspecto participativo e crítico.
A partir de 1982, novas parcerias foram feitas para enriquecer o projeto – a LBA e o SERVAS. Para que o trabalho avançasse, houve também a participação de várias pessoas e pastorais da paróquia – grupo de jovens, grupo de casais, círculos bíblicos, pastoral da saúde, entre outros. Sempre houve dificuldades e problemas, no entanto, nos encontros, palestras e cursos, as pessoas convidadas ficavam admiradas com o desenvolvimento e o processo das atividades. Assim, ajudavam os grupos da zona rural a adquirirem nova concepção da vida e do trabalho como processo histórico e construção coletiva. O enlace entre razão, religião, sentimento e construção social abriram um novo horizonte – a criação da “Associação dos Artesãos Nica Vilela – Fios e Formas”, em 1990. Esse foi um acontecimento fundamental do projeto, resultado de muitas ações e pessoas, com várias frentes de participação e envolvimento. Novos assessores continuaram o trabalho. Muito significativa também foi a concessão da cadeia de Itaguara, pelo Estado de Minas Gerais, para sede da Associação das Artesãs. Desde 1980 as pessoas envolvidas com o projeto e a Prefeitura se articularam para este benefício. Na década de 1990, com a ajuda de deputados e pessoas de influência no governo mineiro, o Centro do Artesanato teve seu espaço próprio.
Um trabalho popular se transforma historicamente e a reflexividade torna-se uma posição necessária associada a um permanente exercício de Ação – Reflexão – (Nova) Ação. Mas, sobretudo, é fundamental ter como horizonte a possibilidade de criação, inovação e motivação para impulsioná-lo. Diferente de outras instituições, uma Associação Comunitária tem a função de assegurar um bom nível de participação de todos os membros. Nesta condição, uma associação é um centro de aprendizado onde se tomam decisões coletivas por meio da prática do diálogo.
O artesanato está muito mais associado a pessoas do que a objetos, pois o produto resultante do seu trabalho é dotado de alma e nele estão presentes o saber, a arte e a criatividade. O melhor espelho de uma comunidade é a sua cultura, pois por essa via somos o que somos. A lógica de uma boa política cultural consolida, fortalece, valoriza e garante os direitos de cidadania. A cultura é a melhor arma para o aprofundamento da democracia, por isso, nada há mais perigoso que o esvaziamento do discurso, do diálogo, da convivência e da participação.
Como lembra Cora Coralina – “As mãos laboriosas” são fecundas, criativas. Fecundas de esperança, humanidades, afeição e doçura, pois sem essas virtudes, a vida será de violência, e tudo estará perdido. Implica ver o Outro como parceiro, com quem se deve estabelecer uma relação de lateralidade e mutualidade. Assim como o artista modela a história, a artesã institui formas, figuras, imagens. A humanidade carece de uma restauração da qualidade de vida. No mundo em que vivemos, ainda há lugar para a criação, a solidariedade e o humanismo. “Vamos de mãos dadas”, lembra Carlos Drummond de Andrade, em um de seus poemas, pois o futuro pertence a quem tem motivos de esperança e partilha mistérios, sonhos e desejos. O sentido da vida é deixar-se envolver num amor que faz partilha, frui para “crescer de todo lado” e abre novos horizontes.
Mauro Passos
Professor e Pesquisador do Centro de Estudos da Religião “Pierre Sanchis” (CER) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Presidente do Centro de Estudos de História da Igreja/Cristianismo na América Latina (CEHILA)